Manuel Cintra Ferreira, Expresso

ENTREVISTA

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José Nascimento é uma das figuras-sombra do cinema português. Montador com créditos firmados em dezenas de filmes, tem tido como realizador um percurso bissexto, que agora conhece um novo impulso com «Tarde Demais», onde conta o trágico e patético naufrágio de uma traineira no Mar da Palha.

Desde «Repórter X» a «Tarde Demais» medeiam 14 anos, o que é muito tempo. Durante esse período, teve outros projectos?, em que é que se ocupou?
Na película, por exemplo, porque fiz a montagem de muitos filmes. Também fui professor no Conservatório, trabalhei em publicidade, fiz magazines para a televisão… Fui-me entretendo. Ao mesmo tempo, ia concorrendo. Tive quatro ou cinco projectos, que foram caindo. E houve ainda a «fase Cavaco», que constituiu um deserto…

E nunca pensou em pegar nesses projectos e dar-lhes outra saída?
Da melhor maneira. Enfim, dedico-me… e passo a outro senão há «feedback». É o curso natural das coisas. Não tenho jeito para o fado e para a queixinha.

Agora, porque levou tanto tempo a voltar a ser subsidiado?
É preciso ver que eu não pertenço a nenhum «lobbie», a nenhum clube, não tenho partido, sempre fui um «free-lancer»…

É uma questão de decisão? Decide-se não esmorecer?
Bom, eu encarei este projecto como uma prova de fogo, como uma última oportunidade. Se visse que ao fim de tantos anos tinha perdido a mão… aí havia que mudar de profissão. Depois, este projecto envolvia um desafio suplementar, que era filmar dentro de água – uma coisa dificílima, porque as marés e os «raccords» estão quase sempre em desacordo… Este filme era a minha prova dos nove. Por outro lado, esta minha «endurance» creio que virá do facto de até aqui nunca me ter assumido inteiramente como realizador, mas sim como técnico. Eu pensava – e julgo que bem – que só este percurso me permitiria estar do ponto de vista técnico à altura das oportunidades que surgissem. Para mim, não fazia sentido eu fazer um filme e ser o director de fotografia a indicar o sítio da câmara… E por isso resolvi ser paciente e ir aprendendo.
Como é que se passa de uma película algo formalista, como «Repórter X», a um filme deste género, que é uma espécie de regresso à inocência do olhar, a uma busca de realismo?
Isso tem a ver comigo, necessariamente, tem a ver com a chegada da maturidade, se quiser… E como nunca me senti obrigado a ser realizador, a ter de fazer um filme por ano, fiquei mais à vontade – não precisava de defender nenhuma espécie de «marca registada». «Repórter X» tinha a ver com artefactos da ficção, enquanto em «Tarde Demais» tratava-se de fazer uma «reconstituição» de algo que havia acontecido na realidade e, ao mesmo tempo, de saber como dar-lhe um olhar diferente sem trair a verdade emocional das coisas.

Se, por acaso, este filme lhe tivesse aparecido mais cedo, acha que estaria preparado para ele?
Do ponto de vista pessoal? Não sei… Seria outro filme, com certeza. Agora, confesso-lhe que, para mim, aprender a viver é fundamental para quem quer contar histórias – é necessário estarmos mais disponíveis perante a vida e para os outros, andarmos sem grandes expectativas…

Isso nota-se na maneira como a câmara se relaciona com as personagens, tanto em «Repórter X» como em «Tarde Demais»… No primeiro, a câmara domina a personagem; neste último, sente-se que a câmara se limita a ser fiel à verdade emocional das personagens… Aqui, a câmara está mais próxima daquilo que eu sou. «Repórter X» era um «filme de «bonecos», muito estilizado… Em «Tarde Demais», a minha atitude perante as personagens é de uma grande identificação. Por exemplo, não dei espaço a planos de recuo, e para demonstrar que os homens estão no meio do rio estive sempre perto deles, a viver o drama dos náufragos…
Isso até torna o drama mais universal e acentua o absurdo, porque vemos os náufragos a caminhar dentro de água, como se fossem Gullivers, entre as margens demasiado próximas…

Esta sensação de claustrofobia foi planeada?
Por muito que eu tenha planificado o filme, quando se chega ao sítio do naufrágio, que é no meio do Tejo, há os ventos, as marés, as correntes… E tem de se aguentar todas estas variáveis… e tomá-las em conta. Tal como tem de se tomar em conta a condição dos actores e ser-se rápido a preparar o plano, senão eles ficam gelados… Portanto, há uma urgência em filmar e uma grande vontade para que tudo saia bem à primeira. Deste modo, as condições extremas em que «Tarde Demais» foi feito obrigou-me a improvisar. E fui percebendo, à medida que ia filmando, que estava tanto melhor quanto mais próximo estivesse das personagens…

Porque é que uma história como esta o seduziu?
Li a reportagem e percebi que estavam reunidas as seguintes coisas: uma ideia de tragédia e uma espécie de comentário irónico à nossa história marítima. Na história trágico-marítima ainda havia grandeza; agora neste naufrágio de uma traineira no Mar da Palha todas as razões que levaram à perda de vidas humanas me pareciam pífias, mesquinhas, medíocres… Contra o passado mistificado era possível contar esta tragédia absurda: pescadores que morrem no Mar da Palha, diante de Lisboa, sem socorro, a cinco anos do ano 2000. Há qualquer coisa de político neste meu gesto, sem nunca ter precisado de cair na mensagem, no panfleto.
Expresso

Realização: José Nascimento
Argumento: José Nascimento, João Canijo
Fotografia: Mário Castanheira
Música: Nuno Rebelo
Montagem: João Braz, José Nascimento
Interpretação: Vítor Norte, Adriano Luz, Nuno Melo, Carlos Santos, Ana Moreira,
Francisco Nascimento, Rita Blanco, José António Aranha, Suzana Borges
Origem: Portugal
Ano: 2000
Duração: 97’

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