Cinemateca : Em Memória de Nuno Melo [1960-2015]

TD

Tarde Demais baseia-se num caso verídico: o naufrágio de um barco de pesca artesanal em pleno rio Tejo, sucedido em meados da década de 90. A leitura de relatos do acontecimento aparecidos na imprensa motivou José Nascimento a querer saber um pouco mais sobre as circunstâncias que rodearam o acidente, e sobre as pessoas envolvidas. O facto de toda a tragédia se ter desenrolado em pleno estuário do rio Tejo, com “Lisboa ao fundo”, acrescentava à história um dramatismo  com o seu quê de surrealista, no sentido mais comum (e incorreto) da palavra. Por outro lado, e esse pormenor não terá certamente deixado de estar também na raiz do interesse de José Nascimento, todo o episódio não deixava de revelar uma série de profundas contradições e desequilíbrios do Portugal moderno e supostamente “europeu”: a demora na reacção das autoridades, as dificuldades burocráticas para accionar os mecanismos de socorro, foram questões cruciais e permitiam, numa reflexão sobre o acidente, sublinhar os contrastes internos do país. Nascimento resumiu assim aquilo que o interesse despertado por esta história o impeliu a fazer: ” Peguei na minha câmara de vídeo e comecei a fazer um levantamento pormenorizado da sequência dos acontecimentos, recolhi os testemunhos dos sobreviventes, senti o desespero da espera e a dor das famílias. Envolvi-me definitivamente com os futuros personagens do filme quando soube que um dos pescadores era pai de uma amiga minha”. E acrescentou que o filme começou assim a nascer, de modo quase involuntário: ” A dramaturgia estava desde o início traçada. Qualquer aproximação ao tema era, só por si, estimulante. O filme já tinha começado a acontecer sem que eu tivesse dado por isso”.

Sem pretender ser uma “reconstituição” tintim por tintim do que realmente aconteceu naquelas 24 horas (mais hora menos hora) em que a tragédia se desenrolou, Tarde Demais mantém-se sempre fiel, em linhas gerais, à evolução dos acontecimentos. Numa primeira parte acompanhamos, exclusivamente, o que se passa a bordo do pequeno barco naufragado ou em vias de naufragar, mais tarde a atenção começa também a centrar-se nas reacções em terra, os familiares e os amigos que começam a achar estranha a demora, as tentativas de “fazer qualquer coisa”, os embates com as dificuldades burocráticas, o desespero e a ansiedade.

Ao mesmo tempo, Nascimento acrescenta, para efeitos dramáticos, uma série de histórias pessoais que rodeiam os pescadores, entre eles e os seus familiares, no que é sobretudo uma maneira de “decompor” um drama colectivo num conjunto de dramas individuais. Isso nota-se, por exemplo, na maneira como é definido o recorte psicológico das várias personagens dos pescadores – para além da história comum que os une, para além do naufrágio e das expectativas sobre a chegada das equipas de salvamento, o interesse do filme deposita-se na maneira como cada um reage aos acontecimentos, na maneira como dissensões e problemas pessoais entre eles explodem ou são atenuados pela convivência numa situação extrema. Em boa parte, é de todas as tensões geradas por essa convivência forçada em tais circunstâncias que o filme retira grande parte da sua energia “crispada” e a usa para construir uma atmosfera terrivelmente “nervosa” – é um bocadinho a lógica do “huis clos”, visto que, mesmo se tudo decorresse a céu aberto, os pescadores estão confinados a um espaço estritamente delimitado.

Em certa medida talvez se possa dizer que quando um filme se “descentra” e passa a focar a sua atenção também no que vai acontecendo em terra, essa energia se dissipa um bocadinho, perdendo-se com isso alguma consistência dramática. Por outro lado, atendendo à intenção de chegar a um relato “total”, onde são importantes as dificuldades surgidas em terra, é difícil pensar que o filme pudesse ter outra estrutura. E no fundo, nada disso impede (bem pelo contrário) que Tarde Demais seja um dos filmes mais pertinentes portugueses contemporâneos no que toca a um olhar sobre um país com uma crónica dificuldade em olhar para os seus próprios contrastes internos.

Luís Miguel Oliveira

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