“Tarde Demais”: terror trágico-marítimo

“Tarde Demais”: terror trágico-marítimo

“À Pala de Walsh”

por Ricardo Vieira Lisboa

Revisto agora, mais de duas décadas depois da sua estreia e no contexto do Festival de Cinema de Terror de Lisboa, o Motelx, Tarde Demais (2000), de José Nascimento, apresenta-se como um dos mais aflitivos, perturbadores e incómodos filmes do cinema português. Ou, pelo menos, os seus primeiros 40 minutos são das coisas mais angustiantes que por esta terra já se filmou.

Tarde Demais (2000) de José Nascimento

José Nascimento começou a trabalhar ainda antes do 25 de Abril no grupo que produzia e realizava o programa de cariz cultural Ensaio, para a RTP – que produziu e realizou igualmente vários episódios da série Impacto. Este grupo, desfeito no final de 1973 por desentendimentos com os órgãos diretivos do canal público, daria origem, logo após a revolução, à cooperativa Cinequipa, dinamizada por Fernando Matos Silva e o irmão, João Matos Silva. José Nascimento e Monique Rutler eram os jovens que se juntavam à experiência de produção e realização coletivas, típica nesses tempos de PREC. Será, portanto, no âmbito das séries Nome Mulher e Ver e Pensar que Nascimento começa a exercitar a mão na realização, ele que era, acima de tudo, um montador (exatamente como Rutler, que começa igualmente na montagem e se lança na realização de forma pontual nestas séries de pendor pedagógico-revolucionário). E, ainda sob o chapéu da Cinequipa, realiza dois importantes documentários militantes, Terra de Pão, Terra de Luta (1978) e …Pela Razão Que Têm (1976). A sua relação com a cooperativa termina após a turbulenta rodagem de Guerra de Mirandum (1981), momento em que lança, com Augusto M. Seabra, o fundamental Ecran, magazine televisivo sobre cinema feito e mostrado em Portugal que muito embora tenha sido um projeto de curta duração (teve emissão durante apenas seis meses, num total de 11 episódios), produziu um profundo e relevante pensamento sobre o estado da produção e exibição de cinema neste país.

Dedicando-se primeiramente à montagem durante a década de 1980 (trabalha com José Álvaro de Morais – ao qual dedicaria recentemente o documentário Silêncios do Olhar [2016] –, José de Sá Caetano, Jorge Silva Melo ou Luís Filipe Rocha), será juntamente com o então muito jovem Edgar Pêra (acabado de sair da Escola de Cinema do Conservatório Nacional e que co-assina o argumento) que desenvolverá o curioso, mas essencialmente falhado, Repórter X (1986), versão “james-bond-izada” da vida do terrorista literário Reinaldo Ferreira, segundo uma perspetiva estilizada, muito devedora da estética da banda desenhada (mas sem nunca realmente assumir essa sua iconoclastia – como Pêra viria a fazer mais tarde, em nome próprio). 

Durante os primeiros 40 minutos de filme somos lançados, sem eira nem beira (literalmente), no meio de um rio de águas baixas mas geladas, cheias de correntes, fortes ondulações, súbitos fundões, ostras cortantes e outros tantas agruras. O que José Nascimento encena não é uma tentativa de salvação, é um martírio: aqueles pescadores sofrem para expiar os pecados de uma “nação marítima”.

Após uma primeira obra, Nascimento é desafiado por Fernando Lopes para participar na série de telefilmes Fados, para a RTP. Esta iniciativa fazia parte de um programa para o cinema português que encontrava no financiamento do canal público uma forma de fomentar o aparecimento de jovens realizadores, numa altura em que os apoios do então ICAM não distinguiam entre primeiras, segundas ou trigésimas obras. No âmbito da série Fados, que teria as suas emissões ao longo de 1989, Joaquim Leitão faz o seu segundo filme, Voltar, Vítor Gonçalves faz o seu segundo (e pouco visto) filme, Meia Noite, o mesmo com Flores Amargas de Margarida Gil, e Cristina Hauser faz a sua primeira longa, após três curtas, Longe. A estes jovens realizadores juntavam-se outros tantos “da casa”, isto é, realizadores a contrato com a RTP, entre eles Jaime Campos, Alfredo Tropa e Luís Filipe Costa. O telefilme de Nascimento (que teve uma rodagem complicada e um processo de montagem doloroso) intitula-se Mar à Vista e, de certo modo, antecipa Tarde Demais, só que em sentido inverso.

Igualmente coescrito com Edgar Pêra [repare-se como quase todas as longa-metragens de ficção de José Nascimento – para cinema ou para televisão – têm argumentos coassinados por outros realizadores: João Canijo é coargumentista de Tarde DemaisJoão Mário Grilo de Hora da Morte (2001), Alberto Seixas Santos de Lobos (2007), Ana Pissarra de Casa Flutuante (2022)], Mar à Vistaprossegue um certo tom cómico e autorreflexivo que o cinema de Nascimento perderia com o fim da parceria com Pêra. História de piratas, tesouros afundados na costa do Algarve, miúdos fugidos de casa dos pais, traficantes de artefactos arqueológicos e desamores urbano-depressivos. Nos seus melhores momentos, há ali qualquer coisa de Moonfleet (O Tesouro do Barba Ruiva, 1955), de Fritz Lang, quando o realizador se deixa levar na visão infantil dos dois rapazes que olham para o mundo dos adultos com um fascínio encantado (paredes meias com os filmes de aventuras e as histórias aos quadradinhos). É, claro, uma visão mítica sobre a história trágico-marítima nacional, fazendo dos múltiplos naufrágios junto à costa portuguesa uma fonte inesgotável de especulações miríficas, esquecendo que cada imaginário cofre cheio de moedas de ouro corresponde a uma série, muito real, de cadáveres.

Nesse sentido, Tarde Demais surge como resposta do realizador a esse imaginário mitológico, quando não mesmo folclórico, sobre a relação do país com a sua costa, no caso particular da relação dos pescadores portugueses com o mar enquanto entidade de sustento e morte. O filme começa, precisamente, num naufrágio – sem explicação, sem contexto, sem justificativo, apenas o terror de uma morte quase-certa, o frio e o medo que se formam por entre as ondas turvas das águas do Tejo numa madrugada cinzenta. Como explicou o realizador, numa nota, “No frio Dezembro de 1995, li um artigo da Laurinda Alves, na revista O Independente, sobre o naufrágio de um barco de pesca artesanal no meio do rio Tejo. Dois homens tinham perdido a vida. As circunstâncias em que se tinha dado o acidente pareceram-me, no mínimo, bizarras. As autoridades competentes, embora avisadas, não saíram imediatamente para o rio para os salvar. Os poucos pescadores, que resistiam às normas da CEE para os estuários, não ousaram ir para o mar com a tempestade que estava e a burocracia para fazer sair um helicóptero de resgate da base aérea do Montijo, indescritível. Isto tudo a dois passos de Lisboa. Estava feito o quadro geral da tragédia”.

Mas a verdade é que pouco importa se a origem do projeto é, ou não, um fait diver, porque durante os primeiros 40 minutos de filme somos lançados, sem eira nem beira (literalmente), no meio de um rio de águas baixas, mas geladas, cheias de correntes, fortes ondulações, súbitos fundões, ostras cortantes e outros tantas agruras. Aquela peregrinação sobre as águas, cheia de tormentos, é um espaço de limbo, onde cada um daqueles quatro homens está já morto até prova em contrário. O que Nascimento encena não é uma tentativa de salvação, é um martírio: aqueles pescadores sofrem para expiar os pecados de uma “nação marítima”. Toda a história de um povo é ali posta em jogo, um jogo de vida ou morte. Toda uma comunidade de marinheiros e pescadores defronta-se com os seus fantasmas. Todas as mitologias douradas são afundadas na lama. Toda a glória dos navegantes frustra-se numa morte na praia (literalmente). E a imagem heroica dos homens do mar rasga os pés na sua própria teimosia, tenta a sorte à custa da desgraça do próximo e perde-se nas correntes, sem que isso mereça sequer um apontamento.

Se dúvidas houvesse, José Nascimento confirmou a dimensão alegórica (e nunca metafórica – porque Tarde Demais é um filme das literalidades, dos corpos diante dos elementos) do projeto em entrevista a Manuel Cintra Ferreira, para o Expresso, onde explicita: “Li a reportagem e percebi que estavam reunidas as seguintes coisas: uma ideia de tragédia e uma espécie de comentário irónico à nossa história marítima. Na história trágico-marítima ainda havia grandeza; agora neste naufrágio de uma traineira no Mar da Palha todas as razões que levaram à perda de vidas humanas me pareciam pífias, mesquinhas, medíocres… Contra o passado mitificado era possível contar esta tragédia absurda: pescadores que morrem no Mar da Palha, diante de Lisboa, sem socorro, a cinco anos do ano 2000. Há qualquer coisa de político neste meu gesto, sem nunca ter precisado de cair na mensagem, no panfleto.”

Aqueles homens, aquela lama e aquela morte anunciada têm a potência de um comentário sobre o mal-estar de um país, a sua ausência de futuro, o seu desespero.

Não é, pois, mero acaso que o nome do barco dos pescadores seja “Era Assim”. Há uma forma de contar o “ato dos feitos do mar” que ali se afunda. E o mesmo é verdade para o filme. A sua natureza bipartida é, ela mesma, uma tentativa de complexificar o discurso sobre o passado (neste caso o passado muito recente). Se é certo que os primeiros 40 minutos do filme têm a força devastadora de uma torrente, a viragem para um filme coral (cheios de figuras secundárias, de pequenos poderes, de burocracias, chamadas não atendidas, atrasos, mensagens perdidas, desinteresse e desprezo) evita a produção de uma hagiografia dos mártires do mar. Além disso, traz a ação sem espaço nem tempo da primeira parte (o recurso gutural aos grandes planos e aos enquadramentos muito picados ou muito contrapicados faz da vastidão da paisagem um espaço sufocante e claustrofóbico) para um presente muito concreto: Lisboa pós-Expo 98, na ressaca de uma celebração histérica das glórias mitológicas da nação de descobridores, quando se havia afirmado a integração na CEE e se abria a porta ao progresso do novo milénio. Nesse momento exato, com a Ponte Vasco da Gama (!) ao fundo, José Nascimento orquestra uma desgraça miserável, onde as promessas de futuro esbarram na pobreza e no provincianismo sistémicos de um pequeno país periférico.

Quando frisei a dimensão alegórica de Tarde Demais, fi-lo com um outro filme português (de terror?) em mente: A Caça (1963), de Manoel de Oliveira, filme que encenava uma desgraça semelhante (um rapaz afundava-se no lodaçal da ria de Aveiro e o desentendimento entre os homens que o tentam salvar garantia a sua morte) [Fugindo ao cinema nacional, Cintra Ferreira citou Le Salaire de la peur (O Salário do Medo), de Clouzot, e a mim ocorreu-me o outro inevitável pré-survival horror film marítimo, Lifeboat (Um Barco e Nove Destinos, 1944), de Hitchcock]. A relação entre o filme de Nascimento e o de Oliveira não é meramente cosmética, leia-se, não se fica pela lama. Tanto para Manoel Oliveira como para José Nascimento (e parece-me claro que no filme o segundo cita conscientemente o primeiro) aqueles homens, aquela lama e aquela morte anunciada têm a potência de um comentário sobre o mal-estar de um país, a sua ausência de futuro, o seu desespero. Se no tempo de Oliveira o final pessimista não foi aceite pela Censura e o realizador foi obrigado a acrescentar uma cena extra de salvamento. No caso de Nascimento, já sem o lápis azul em riste, os dois salvamentos correspondem apenas à fidelidade narrativa do fait diver. Foi assim que aconteceu, fiquemo-nos por aí. Mas apesar disso, não há qualquer redenção para os sobreviventes. Não há esperança, nem sentido de futuro. Onde Oliveira pensava um regime sem espaço para a juventude, em Tarde Demais há o corpo de um homem de meia-idade, pobre, pai de filhos, hirto, na lama, a olhar o céu e a encontrar nas nuvens a miragem de um raccord salvífico. O oásis de um europeísmo que chegou tarde demais, e mal.

Tarde Demais será exibido no próximo sábado, 16 de setembro pelas 19h00 na Sala 3 do Cinema São Jorge, no âmbito do Motelx – Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa, como parte da secção Quarto Perdido. A sessão integra-se no projeto FILMar, da Cinemateca-Portuguesa, com o apoio do programa EEAGrants 2020-2024.

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