TARDE DEMAIS conta a história de quatro homens que tentam sobreviver ao naufrágio de uma velha canoa de pesca no meio do rio Tejo.
Após horas de submersão esperam a luz da manhã e a baixa da maré para poderem caminhar entre os bancos de ostras e chegarem a uma das duas ilhas aluviais, em direcção à margem. Mas a longa espera e a temperatura gelada da água deixou-os com os corpos debilitados e os pensamentos turvos.
Os caminhos escolhidos para chegarem à margem reservam perigos e sacrifícios inesperados. A salvação não parece óbvia.“Olhem que isto é perto de olho e longe de braço” diz António (Carlos Santos), o mais velho, que volta para o barco.
Os mais novos continuam a caminhada mas as opiniões dividem-se e os conflitos emergentes separam-nos inevitavelmente. Os bancos de ostras cortam-lhes os pés, as correntes do rio arrastam-lhes os corpos. O lodo suga-lhes o movimento lento das pernas.
Joaquim (Nuno Melo), o mais forte, vê-se obrigado a voltar para o barco, para junto de António. Manel (Adriano Luz), depois de nadar até ao mouchão da Póvoa chega exausto, mas Zé (Vítor Norte), o dono da traineira, continua em direcção à margem. Anoitece.
Em terra, as famílias tentam desesperadamente arranjar meios para os salvar. João (Francisco Nascimento), filho de Zé, parte com Mestre Vau para o rio em busca deles.
A noite já vai longa quando a polícia marítima inicia uma busca no rio. A salvação tarda e os quatro pescadores estão à beira de serem derrotados pelo frio e pelo desespero.
Argumento : João Canijo / José Nascimento a partir de um artigo de Laurinda Alves no “Independente”
“Era sempre água em cima da gente, sempre, sempre…”, recorda-se Manuel Aranha, hoje o único sobrevivente de um naufrágio no Tejo, em 1995, em que morreram dois colegas pescadores, vítimas do frio e do cansaço. “Tarde Demais” é a reconstituição, fantasmagórica, dessa tragédia que aconteceu com Lisboa à vista.
Não aconteceu há muito tempo. Em 1995, enquanto nos terrenos do que viria a ser o Parque das Nações se faziam trabalhos de terraplenagem e, mais acima, os trabalhadores erguiam os pilares da Ponte Vasco da Gama, a alguns metros no meio do Tejo naufragava uma fragata com quatro pescadores. Enquanto o sol nascia, subia, descia e desaparecia de novo, eles lutavam pela vida.
Vencendo a água, as ondas, o vento e o frio, de membros tolhidos, pés cortados e em hipotermia, Manuel Aranha chegou a terra. Quase 24 horas depois de ter saído para o mar, em coma, cara roxa e corpo negro, António Fragateiro era salvo. Para Joaquim Silva e José Fragateiro era tarde demais.”Tarde Demais” é exactamente o título sob o qual o cineasta José Nascimento recuperou a tragédia que primeiro se revelou ao país nas páginas da revista do semanário “Independente”.
A jornalista Laurinda Alves, actual directora da revista “Xis”, do “Correio da Manhã”, e cronista da Pública, chamou “Morrer a meio de um dia” à história que, até hoje, mais a tocou. “Passava das seis e meia. A madrugada gelava os ossos e arrepiava os gestos. Chovia sem parar. Quatro vultos deitavam as mãos às redes com o vigor de quem luta pela vida”, começava a reportagem. Como a tragédia.Apenas minutos depois de recolhidas as redes, terminada a faina, já com a ideia de um regresso a casa em mente, os pescadores descobriam no costado do barco um rombo por onde a água entrava em cachão.
“A bomba não deu vencimento, a água era muita”, conta Manuel Aranha, o único sobrevivente ainda vivo. E pouco havia a fazer.A voz, hoje, não denota mágoa nem ansiedade. É segura, despojada. Apenas pelos olhos, quando no fim de uma frase eles se fixam no vazio, passa uma nuvem. Como se olhasse de longe a história. “E já lá vão cinco [anos]. Foi no mês dos meus anos, Novembro. Fiz a 18 e isso foi a 29.” Era um dia frio que não viu o sol e ficou na memória do pescador como “um dia muito ruim”. O nevoeiro deixava o horizonte a metros, envolvendo os náufragos e o barco, que se afundou em meia hora. “Ainda passaram lá uns barcos, dois, salvo erro, que vinham lá de cima do lado de Vila Franca, barcos que andam a carregar areia. Passaram e o mestre não conseguiu ver a gente. Mas não estavam muito longe, passaram perto.
“Os quatro homens viram-nos passar e continuaram agarrados ao guindaste, a única parte do barco que se erguia acima da água. “Era praia-mar, a água estava cheia e a gente não podia largar o barco: mesmo com os coletes, com as ondas que faziam, a gente morria na mesma. Morria porque as ondas iam sufocar a gente de água, e a gente morria mesmo. Havia que aguentar ali e esperar que a água vazasse, porque, quando ela vazasse, havia hipótese. O que tínhamos era que gramar ali, como gramámos, aquelas cinco horas.”Ali, “a aguentar o mar, pumba, pumba, o mar a bater”. “Era sempre água em cima da gente, sempre, sempre, sempre… sempre ali agarrados.” Cinco horas, desde as 10h30, com o corpo cada vez mais frio, mais fraco, mais roxo. Até que a água baixasse e deixasse a descoberto uma coroa de areia, ali perto, onde os náufragos não teriam mais que água pelo peito, no meio do rio. “Quando a gente está nesta situação, lembra-se de tudo e mais alguma coisa”, recorda Manuel Aranha. “Lembra-se da família, de tudo. É o fim…
Tive sempre esperança que me salvava e influí sempre os meus colegas. Dizia-lhes: ‘Tenham calma que a gente salva-se, tenham calma que a gente salva-se.’ Eles estavam assim mais para o lado do pessimismo: ‘A gente morre todos aqui, a gente já não se salva.'”Manuel Aranha sabia que, uma vez em pé nessa coroa de areia, o grupo teria oportunidade de se preparar, física e psicologicamente, para atravessar o pedaço de rio até aos lodaçais, mais perto da margem. Depois de ultrapassados, a pé, bastaria atravessar a nado um braço de rio mais estreito para chegar a terra.
É por essa fantasmagórica imagem de quatro homens enregelados, como que paralisados em pé no meio do azul do rio, apenas meio submersos na água e olhar perdido ao longe, na direcção da margem, que “Tarde Demais” abre o seu primeiro plano. Vítor Norte, Nuno Melo, Adriano Luz e Carlos Santos fazem o percurso de Manuel Aranha, Joaquim Silva, Zé Fragateiro e António Fragateiro. “Olhem que isto é perto do olho e longe do braço”, diz no filme Carlos Santos, como o terá dito António, o mais velho dos quatro pescadores. “O António dizia que não ia, que da parte dele não tinha hipótese de fazer a travessia. E o outro colega [Joaquim Silva] também estava em dúvida, porque sabia nadar pouco”, conta Manuel Aranha. “Abalou o Zé primeiro. Eu fui o último, quer dizer, a seguir ao Zé fui eu.” António regressou ao barco onde Joaquim Silva também acabou por ficar. Horas depois, quase às 15h30, Manuel Aranha já conseguira atravessar o rio. “Depois apanhei o lodo e fui direito à lezíria. Já tinha uma visão daquele sítio porque conhecia mais ou menos aquilo e pensei: ‘Bom, o caminho é este.’ E aparece-me o Zé, a gritar, a chamar-me, mas ele, coitado, não podia… Vinha a gatinhar pelo lodo, porque não tinha forças. Eu tentei levantá-lo e trazê-lo para a borda do praia-mar que é o sítio onde a água chega, quando enche. Pondo-o ali a água já não pegava nele para o levar. Mas não podia levá-lo, não podia, de maneira nenhuma. Se aquilo fosse uma estrada, podia esperar e pedir boleia, mas é que não podia mesmo. Então tive que deixá-lo lá. Deixei-o lá. Custou-me muito… E os outros ficaram para trás. O Joaquim, sei que no outro dia apareceu morto. O António amarrou-se ao barco, ao guindaste, e esperou que alguém aparecesse.”A situação vivida em pleno rio manteve-se depois, no meio do lodo, com o pescador a arrastar-se pela lama onde se escondem cascas de ostras e lamujinhas que cortam os pés e tornam penosa a caminhada. Sempre com Lisboa à vista. “Aquilo é pôr o coração à larga. Chega a um ponto que a gente aquece e já não sente nada. Tinha era que acelerar aquilo. Caí muitas vezes, para dentro das covas, que a gente não vê. Caí muitas vezes, mesmo muitas vezes… Havia alturas em que dizia para comigo: ‘Não sei se vá, se fique.’ As forças já estavam a faltar, porque eram já muitas horas. Mas depois vinha aquela coisa de a pessoa chegar, chegar a terra… Eu estava sempre a ver as luzes de terra do lado de Lisboa, do lado de Sacavém.”Neste momento Manuel Aranha, como os seus companheiros, estavam naufragados desde as 10h30, deveriam ter regressado a casa pela hora do almoço, mas era de novo noite – depois de terem saído para o mar às 4h30 da madrugada anterior. Que se passava em terra? Ninguém deu conta?! A maioria dos pescadores achou que, aproveitando uma maré de sorte na pesca ao robalo, Zé Fragateiro e os colegas tinham decidido ficar até mais tarde. Mas apenas alguns sabiam que por volta das 11h uma série de trabalhadores da nova ponte tinha descoberto, enroladas nos pilares que erguiam, as redes partidas e cheias de peixe, que na altura do naufrágio a maré tinha levado. “Essas pessoas é que andaram mal. Quando aparecem assim umas redes, abandonadas, com peixe, peixe fresco, e não aparece o barco, deve-se pensar duas vezes…”, comenta hoje António Aranha com visível revolta. Depois, à medida que o dia se foi escoando, as famílias dos náufragos e um pintor que frequentava a associação de pescadores do Montijo começaram a movimentar-se. E, visto que já de noite tinham saído goradas as tentativas de duas barcas que se tinham prestado a sair em busca dos náufragos, a grande esperança era fazer sair um helicóptero. Não foi fácil. O cabo de mar não podia fazer nada, não tinha autoridade para fazer levantar o helicóptero. Era necessário sair da unidade para falar por telefone com os superiores. Tentou-se, mas do outro lado da linha perguntava-se se tudo não era uma brincadeira. “Então brinca-se com estas coisas?”, interroga-se perplexo o pintor. “Chamaram-me trapalhão, que estava a brincar, até que foi ao telefone a mulher do Zé [Fragateiro], a chorar.” Finalmente, através da GNR a polícia marítima enviou dois barcos. Nessa altura, supõe-se, o mais difícil ainda estava por chegar a Manuel Aranha: após os lodaçais, “havia outra vez um braço do rio”. “Tive que o atravessar também. Aí custou um bocadinho, tive que recuar porque ia muito quente, ia a fazer esforço, e, quando entrei na água, ela estava gelada, começou a arrefecer-me. Tive medo e recuei. Fiquei [faz um gesto com a mão pelo peito] e depois fui lentamente. Quando me apanhei do outro lado, aí é que eu disse: ‘Eu acho que por mim já estou salvo, agora vamos lá a ver se consigo salvar os outros dois que estão lá.’ Um sabia eu que ia morrer de certeza, o Zé. Não dizia coisa com coisa. Não tinha forças, não se conseguia levantar. Podia estar lá aquela cadeira e ele a perguntar-me: ‘O que é aquilo?’ Do frio, de tudo, ele estava roxo.”Manuel Aranha foi dar a um cais da BP onde, como testemunha, foi ajudado. “Eles perceberam logo o que se tinha passado… Um homem só em cuecas, naquele estado.” Um médico não permitiu que Manuel Aranha, que até tinha “na ideia acompanhar as buscas da polícia marítima”, se voltasse a levantar. Em vez disso desenhou um mapa, com a sinalização de bóias, para que as buscas pudessem seguir de forma a encontrar o barco. E eventuais sobreviventes. Foi por isso que António Fragateiro foi descoberto, amarrado ao barco. De Joaquim Silva não havia sinal e, para o descobrir, como a Zé Fragateiro, seria necessário, de facto, fazer levantar um helicóptero, o que, segundo as autoridades, era impossível devido à escuridão e mau tempo. E a maioria das pessoas que poderia insistir achava que todos já tinham sido salvos. Só na manhã seguinte o helicóptero levantou, quando Joaquim Silva e José Fragateiro já estavam mortos. José Fragateiro não morreu afogado, morreu na lama, a seco, de frio. Quando chegaram os helicópteros, já lá estavam os pescadores, para trazer os corpos. Comentam os pescadores que pouco tempo antes esses mesmos helicópteros tinham levantado voo de noite para ir a um acampamento de ciganos sob suspeita de tráfico de droga.Manuel Aranha só voltou ao mar dois meses após o naufrágio. Num dia estranho em que também poderia ter acontecido alguma coisa. “O que aconteceu deixou tudo desarranjado. Desde então a vida só andou foi para trás.”