CICLO
JOSÉ NASCIMENTO – NEM VERDADE, NEM MENTIRA
Há cem anos, nos “loucos anos 20”, uma figura reinava na imprensa nacional, Reinaldo Ferreira, o famoso Repórter X. Mestre do sensacionalismo, detetive dos imaginários, especulador dos temores e dos tabus, a sua curta carreira inspirou José Nascimento a realizar a sua primeira longa-metragem de ficção, apropriadamente intitulada REPÓRTER X. Num dos diálogos mais inspirados desse filme, quando o repórter é questionado sobre a veracidade das suas histórias mirabolantes, este retorque, “não são nem verdade, nem mentira”. Eis o mote da retrospetiva dedicada a José Nascimento, realizador multifacetado que, ao longo de uma carreira que já conta com mais de 50 anos, sempre navegou as ambiguidades do real. Dono de uma das filmografias mais ecléticas do cinema português, a sua obra inclui filmes de época, policiais noirs, dramas realistas, filmes-ensaio, comédias musicais, aventuras infantojuvenis, filmes-ópera, documentários etnográficos, videoclipes, filmes-performance, cinema militante e várias outras formas híbridas. Em outubro será possível conhecer melhor a sua vasta e diversa produção.
Como tantos outros, José Nascimento começou o seu trabalho em cinema no Departamento de Fotografia e Cinema (os ditos Fotocines) dos Serviços Cartográficos do Exército – por ali passaram vários importantes futuros realizadores, jornalistas e apresentadores de televisão. Em 1969, parte para a Guiné como técnico de som, juntamente com José Luís Carvalhosa (imagem) e Fernando Matos Silva (realizador). Regressado a Portugal, trabalhou em televisão (programas Ensaio e Impacto) e como assistente de realização (de António-Pedro Vasconcelos, em PERDIDO POR CEM, e de Fernando Matos Silva, em O MAL-AMADO) até que chega a Revolução dos Cravos. Será a partir do grupo do exército, que se alargara com os trabalhos para televisão, que se formará a Cinequipa, a primeira das cooperativas cinematográficas fundadas após o 25 de Abril e uma das mais dinâmicas durante o período do PREC.
Com a Cinequipa, e de forma coletiva, José Nascimento fará inúmeros documentários e programas televisivos de cariz político, nomeadamente no âmbito das séries Nome Mulher (programa sobre a luta pelos direitos das mulheres com autoria de Maria Antónia Palla e Antónia de Sousa) e Ver e Pensar. No entanto, Nascimento é um dos poucos membros da cooperativa a assinar documentários em nome individual, destacando-se …PELA RAZÃO QUE TÊM! e TERRA DE PÃO, TERRA DE LUTA, dois registos preciosos sobre a Reforma Agrária no Alentejo, onde o realizador acompanha o movimento basista que levou às primeiras ocupações de terras e à luta dos camponeses contra o poder dos grandes latifundiários.
Após a desagregação da Cinequipa, José Nascimento realizou dezenas de programas televisivos e algumas publicidades entre o final dos anos 1970 e meados da década seguinte (séries como O Caldo de Pedra, Viagem, Binário, Vamos Jogar no Totobola e Ecran), de onde se destaca o trabalho experimental com a Juventude Musical Portuguesa e um memorável retrato de Manoel de Oliveira que, em 1981, celebrava os seus cinquenta anos de carreira de cineasta (documentário correalizado com o crítico Augusto M. Seabra e que provocaria o fim da sua relação de trabalho com a RTP, por desacordo com a então direção de programas do canal). Foi professor de montagem da Escola de Cinema ao longo de grande parte da década de 1980, sendo um dos mais reputados montadores portugueses – montou filmes de Luís Filipe Rocha, José de Sá Caetano, José Álvaro Morais, Alberto Seixas Santos, João Botelho, Pedro M. Ruivo, Sérgio Tréfaut, Fernando Vendrell, entre outros.
Além do já referido REPÓRTER X, onde o realizador reinventa os anos 1920 em Portugal à luz do “frágil” cosmopolitismo lisboeta dos anos 1980 (e onde Joaquim de Almeida se estreia no cinema nacional), José Nascimento assinou – até ao dia de hoje – cinco outras longas-metragens de ficção. A mais célebre (nacional e internacionalmente) é TARDE DEMAIS, filme de sobrevivência desesperada que se baseia na história verídica de um naufrágio no Mar da Palha onde morreram dois homens em 1995, nas vésperas da Expo 98. Depois deste, com argumento coassinado com Alberto Seixas Santos, realiza LOBOS, filme que lança a atriz Catarina Wallenstein e que se apresenta com uma continuação das mesmas preocupações de TARDE DEMAIS – a pequenez do ser humano face à violência do mundo. Mais recentemente, com CASA FLUTUANTE (coescrito com Ana Pissarra), o realizador regressa ao Alentejo num filme que cruza A Jangada, de Jules Verne, com a Viagem Filosófica à Amazónia do explorador português Alexandre Rodrigues Ferreira, estabelecendo um paralelo entre o Rio Amazonas e o Rio Guadiana. Assinou ainda dois telefilmes muito pouco vistos, o elegante retrato da decadência do marcelismo, HORA DA MORTE (protagonizado por Rui Morrison, parte da série Crimes Portugueses escrita por João Mário Grilo e Paulo Filipe Monteiro), e o divertido RÁDIO RELÂMPAGO (estreia de Nuno Markl na escrita para cinema).
Ao longo da última década, o realizador tem-se dedicado ao documentário. Assinou um tocante retrato do amigo e colega, o realizador José Álvaro Morais, o filme SILÊNCIOS DO OLHAR – sendo que, em diálogo com este filme, apresenta-se igualmente O BOBO, filme de Álvaro Morais montado por José Nascimento. Além desse, correalizou ainda dois documentários (com Ana Pissarra) sobre a relação de Portugal com as suas antigas colónias, nomeadamente através do património arquitetónico modernista de Moçambique (BRISA SOLAR) e os vestígios culturais ibéricos na Mauritânia (NAÇARA, UMA E OUTRA VEZ, filme que terá a sua estreia absoluta na Cinemateca).
Ao longo de quinze sessões, que decorrerão durante a primeira quinzena de outubro, apresentar-se-á uma amostra da extensa filmografia de José Nascimento numa lógica de choques e continuidades, onde filmes de diferentes épocas e produzidos em contextos muito distintos estabelecem correspondências mais ou menos inusitadas. Entre trabalhos para cinema, televisão, galerias de arte e edições de DVD, a obra de José Nascimento é apresentada em toda a sua heterogeneidade formal e narrativa. Uma obra que leva ao limite as lógicas programáticas do cinema de autor, propondo um entendimento pragmático e anti-dialético do mundo: nem verdade, nem mentira.
Em novembro, a Cinemateca lançará um catálogo sobre a filmografia de José Nascimento que contará, além de uma extensa entrevista com o realizador, de inúmeros documentos e fotografia, com contributos de, entre outros, colaboradores próximos (atores como Adriano Luz ou Vítor Norte, de músicos como Nuno Vieira de Almeida, Luís Madureira ou Flak e de colegas, como Bruno de Almeida, João Viana ou Fernando Vendrell) e críticos e programadores de cinema (António Roma Torres, Francisco Ferreira, Luís Miguel Oliveira, Maria João Madeira, Ricardo Vieira Lisboa ou Vanessa Rato). O lançamento, agendado para dia 29 de novembro, será seguido pela exibição da nova cópia digital restaurada de REPÓRTER X. O realizador acompanhará as várias sessões do Ciclo.